terça-feira, 23 de dezembro de 2014

HORA

Das canções cuspidas da psique,
apenas o vermelho abafado e metropolitano subsiste
na névoa intransigente.
O frio é mais dos olhos
do que da pele.

A imposição da hora
é ser baldio.
Tudo o mais é rearranjo mnemônico,
exceção feita às mariposas
que impõem o presente
de forma mais competente
do que a hora.

O agora
raramente
se demora.
Morre pisado
ou sob livros
de capa dura,
mais fáceis de limpar.

No réquiem da hora,
brota-me um crisântemo.
Nele as vezes nascem
mariposas.

domingo, 21 de dezembro de 2014

A FOTO DA ARTISTA ENQUANTO SONHO

É muito necessário ser alexandrino,
beber de Homero vinte séculos de imagens
para depois resumir
num haicai moderno
o puro devir
da linguagem sem signos
do que de fato falo.

Na penteadeira você vê-se
como se dissolvesse as linhas do próprio rosto
e, com elas, a Ilíada e os versos de Camões.
Eu, assentado no teu ponto cego,
sou meia-luz
a dissolver tua dissolução.

É muito necessário ser alexandrino,
beber de Homero vinte séculos de imagens,
para entender a dádiva
do instante presente em que,  sozinho,
faço-te teus próprios passos ecoados
para longe
da dissolvida meia-luz
em que fui olhos,
para notar
que tudo são dádivas
nesse pobre mundo.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

SIMPLES

Ao cultuar o simples,
vi todas as teorias
entre os galhos de uma árvore.
Escrevi todas elas
até que escorressem
terra adentro.
Alimentei a árvore
com o que penso?

ATRIZ

Sobre o palco
não se fala
sobre o palco.
A atriz
atrai
sendo outra.
Sobre o palco
minha voz
na boca dela
explode odes
irregulares.

Mal sabe ela
que sê-la em sua boca
sela laços
mais outros
do que a horda de olhares
que ela atrai
para esconder-me,
para ser meu texto.

Quando na coxia,
sorrimos ambos
por motivos outros.
Ela, porque pode ser-me
numa catarse absoluta.
Eu, porque não pude ser-me
fora do palco
para ser ela em sua boca.

O palco é uma gigante caixa oca
em que ocorro para sumir
por detrás da cortina do que não digo.
Só a atriz ignora e sabe sobre mim
tanto quanto eu.
Só que ao contrário...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

JARRO

Ao jogar toda a água de um jarro no mar,
não notei que jamais poderia recuperá-la,
não aquela água que do jarro dividiu-se
em poucos segundos de queda
e depois em ar e lembrança.

A água geral,
essa que é nuvem e biologia,
esse coletivo de movimentos padronizados
de uma parte do Inominável,
sempre será e não será a água 
que, paciente, coletei com o jarro
e lancei onde estaria invariavelmente.

Tive afeto pela água.
Amar é ser devir-louco do que se ama.

Hoje poluem-na todos os esgotos do mundo.
Hoje ela submerge a civilização moderna
como quem movimenta uma peça por século.

Da fábrica de jarros, um dia
sairá outro jarro que coletará a mesma água
que o primeiro coletou,
mas com outra forma, conveniente à época,
segurado por outra mão que há de ser a minha.

Tudo porque amar é ser devir-louco do que se ama,
Só o devir-louco pode fazer com que um evento se repita,
debaixo do nariz e das trenas dos lógicos
e, ainda mais belo,
sem alarde.