terça-feira, 21 de janeiro de 2014

HOMONÍMICO

Há comodidade em ser multidão,
na desculpa de ser invariavelmente outro.
Tudo são eus que comem, que gesticulam,
que projetam, que rezam, que sofrem,
fazendo do laguinho morto da heteronímia
uma impossível tormenta,
transformando em naus
barquinhos de jornal
e afundando-os na cabeça para ser Napoleão.

Na centopeia do ser
se espreguiçam pernas em excesso
e nervos em falta
(centopeias tem coração?).
Chovem afagos para os eus
que nunca têm culpa,
qual ácidas lágrimas
chovidas de nebulosos eus místicos
e incognoscíveis
a transbordar os leitos
dos eus deuses e esquecidos.
Para desembocar em que ralo,
alimentar que poça d'água?
Para conquistar a Europa no quintal?
Ser déspota obscurecido,
almirante louco?

Mais íntegro ser um só,
homonímico.
Não neurótico.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

OU VISTA

Do prédio, o ouvido
acusa apenas
como agudos freios estridentes
mantêm presos rodas e dentes
ao trânsito do que por natureza passa.

Da janela, terças partes de outros prédios
sem topo e sem propósito
entretêm olhos internos
por trás dos espelhos de todas as fachadas.
Meu prédio é, quiçá, só terça parte
por detrás da minha imagem refletida
no espelho além do espelho
que é a construção na qual não habito.

Os papéis e o ser-estar
são menos meus
que a agudez metálica
do som gerado
pelo semáforo.

domingo, 12 de janeiro de 2014

DÍGITO E GRAVATA

Assopra a marca do teu dígito,
as rugas de tua pele é que fazem teu nome!
Teus números são algoritmos do que some
pouco a pouco por detrás do que incito
com a cédula em que  depositas teu voto.
Tua confiança irrevogável e frouxa,
é quem incha de poder a pança elástica
de quem sorri por cirurgias plásticas
e pensa de maneira sempre ilógica.
Assopra a marca de teu dígito
que ser livre é não ter pele sobre os dedos,
não ter nome sobre a fronte,
é escancarar a cara calva
dessa vida à toa
e enforcar-lhe
com a própria gravata.

sábado, 11 de janeiro de 2014

DE UMA VEZ

Se o vestíbulo do verbo é a garganta,
qual é o mapa que me dirige
pra dentro da porta sacrossanta
do que me transpõe a laringe?
Nada há de reino no hoje do mundo,
no bojo da crosta em que se protegem
ensimesmados nadas em que me redundo,
eu que não conheço as cordas que me regem.
Porque devo transpor as portas da palavra
e levantar maremotos de breu,
se não atinjo um reino pleno e meu
quando o logos que me tange se apalavra?
A língua está no coração, e ele na língua,
autorretratos recíprocos e em movimento.
A vista fica clara no presto momento
em que a voz estala
e o pensamento
míngua...