quinta-feira, 16 de junho de 2016

HECATOMBE

Quando dos rituais a hecatombe tornou-se clara,
em algum ponto não horizontino do céu nenhum em que os símbolos estão,
acordei e vi na cabeceira da minha cabeça
não os livros mal dispostos que me velaram o sono,
mas a poeira sobre eles que até hoje não sei do que é feita.
Supus dela a terra, a pele, o mofo e os pelos
como que triturados pelo fim de sua finalidade
e pelo início do desvio desta em outra:
a de significar o fim de uma finalidade
e o velho adjetivo e não pessoa para além desse fim.
A poeira era parte do meu céu nenhum,
ora descosturado por uma hecatombe pouco óbvia,
sequer silenciosa,
posto que o silêncio é o cerne de todos os rituais.
Levantei-me da cama e do espelho passei ao largo,
que ele era poeira e isso não era em nada evidente,
mas a pura evidência.
Chorei por quem angustiou-se ante o espelho e depois aprendeu,
porque o espelho não ensina senão uma poeira invertida
e a inversão é a sua maior virtude.
O espelho é moralmente pobre.
Enquanto caminhava pelo corredor de minha casa,
ouvia a hecatombe autoanunciada
como quem não se lembra de um arranjo.
O céu nenhum era sobre a terra, também nenhuma,
uma projeção cinematográfica capaz de dizer a verdade.
Qualquer verdade.
Isso, porém, não redimia o fato de que mentia
e que a hecatombe de todos os rituais era monstruosamente bela
porque não dizia a verdade,
mas mostrava sua indizibilidade.
Arjuna viu sua caricatura infantil nas faces indianas de Krishna,
e foi por não terem permitido essa hecatombe
que Yeshoua pediu perdão pelos homens,
para ser transformado no seu inverso tão logo foi possível
pelos que têm medo.
E eu, que mal havia percorrido quatro passos,
tendo em vista a pequena dimensão da minha casa,
sentei-me à mesa e recusei abrir o pão para passar-lhe a margarina
como quem camufla com um ritual o aspecto pobremente formal do pão,
que não é nada sem que algo o preencha.
Neguei também o açúcar ao café
e a forma da hecatombe em meu céu nenhum
foi a forma do meu rosto quando sorri e gostei do sorriso.
Vesti-me com uma roupa de ir pra fora de casa
e enganei o engano ao cumprir um ritual,
pois repetir demais a quebra de paradigma
é torná-la o que ela não é,
como fizeram com Cristo.
O instante em que a hecatombe deixou de anunciar-se
foi o instante em que aconteceu.
Não pensei, e por isso não houve experiência.
Fui o cúmulo do ser criança
e sorri na forma da hecatombe
em meu não céu.
Quando eu morrer, estarei lá.
Porque estou lá.
Abri a porta de casa e dei um passo.
O frio de inverno era quase tão feliz quanto eu.